Na imagem tem uma garota nadando, ela representa a inocência
(Helena em todas as descrições), ela está nua, não se esconde atrás de nenhuma
máscara ou roupa. Os homens de máscaras Venezianas são os “carnais” que
escondem seus rostos, são as pessoas comuns que se preocupam com sua imagem
perante a sociedade. Os seres sobrenaturais são as forças da natureza, os
sonhos, o poder de conseguir algo impossível.
Allan Cassiano
Bruno
Coriolano de Almeida Costa
ATENÇÃO: Dizem
que nem todos conseguem ler esse conto até o seu final, especialmente no
horário recomendado: depois da meia-noite, hora essa que muitos acreditam ser o
momento onde o portal entre dois mundos se abre. Claro que isso não passa de uma
lenda, superstição ou coisa do tipo. Você não precisa fazer isso se não quiser,
mas se assim fizer, boa sorte! Como dizem por ai “existem mais mistérios entre
o céu e a terra do que sonhamos em nossa vã filosofia.” E todos sabem que” o
adormecer da razão gera monstros”.
Caro
Felipe, você sempre reclamou que eu nunca lhe escrevia e que nas raríssimas
vezes que assim eu procedia, nunca se mostrou satisfeito com os acontecimentos
da nossa cidadezinha, Apophistyphon. Pois bem, agora você pode me agradecer
pelas notícias que chegam às suas mãos nesse momento por meio dessa carta.
Subitamente, sinto um frio estranho percorrer, de forma intensa e amedrontadora,
todo o meu corpo, futuro candidato a cadáver. Exatamente, todos os meus um
metro e sessenta e nova centímetros. Tenho a incrível e não confortante
sensação de que estou sendo observado. Não estou certo de que pela manhã,
quando você tiver terminado de ler essa carta, eu ainda terei pulso, mas se a
morte vier me buscar, que pelo menos, encontre-me devidamente preparado. Então, que os relatos, aqui presente, lhe tenham
alguma serventia. Não hesitarei em contar cada detalhe e se o cavaleiro do
apocalipse já se mostrar pronto para cumprir sua missão, eu já terei,
indubitavelmente, completado a minha.
Ontem
encontraram os restos mortais de uma jovem no pequeno rio que se encontra
próximo à casa do morro. Acredito que ainda se lembre do lugar, pois se trata
de um casarão velho e abandonado com aspecto sombrio e macabro. Nós
costumávamos ficar espiando pela janela suja que dava para um quarto. Essa
morada era ornamentada de velhos quadros empoeirados. Verdadeiras testemunhas
de tempos bem remotos e singularmente sinistros.
O corpo em questão estava bastante deteriorado
devido à ação severa do tempo e dos peixes. Ninguém tinha idéia de quem se
tratava, mas ontem mesmo os peritos vieram das cidades vizinhas para tentar descobrir
de quem era aquele cadáver podre que antes havia pertencido a alguém que reluzia
a inocência de uma pobre alma que caíra nos braços da serpente maligna e se
perdera para toda a eternidade.
Mas
o que todos descobriram ontem já não era novidade para a minha pessoa.
Infelizmente, eu já tinha conhecimento dos acontecimentos que precederam
aquelas situação toda. Ela se chamava Helena, nome bonito e até poético. Era
uma mocinha muito conhecida na cidade. Você não a conheceu porque quando
partiu, ela ainda era muito jovem.
Não
sei se lembra que aos domingos costumávamos freqüentar os grupos de jovens
naquela pequena capela do centro. Na nossa época somente os homens participavam
dos grupos dominicais, mas com a morte do padre Pedro, que Deus o tenha, as
coisas mudaram muito por aqui. O novo padre, que se chama Caronte, é um tipo de
sacerdote totalmente diferente do anterior. Ele é bem menos conservador e permitiu
várias mudanças na igrejinha. Uma dessas mudanças estava ligada aos grupos de
jovens. Quando ele se tornou padre, deu o direito às meninas de também fazerem
parte desses grupos. O que para muitos não foi algo tão alarmante assim, pelo
contrário, pareceu ser mais democrático, uma vez que Deus não teria feito
restrições a ninguém e todos teriam o mesmo direito de comungar e se sentir
mais próximos do Criador.
Como
falei, esse comportamento do padre foi aceito com bastante entusiasmo entre os
moradores de Apophistyphon. Você sabe que tudo que acontece de novo na cidade
vira o maior rebuliço e se torna o tema principal nas mesas de bares e na
feira. Todos só falavam nisso durante meses, eles achavam que o sacerdote estava
modernizando a igreja e que isso era normal na cidade grande, não havia
problema, pois o padre Pedro seguiu sempre um pensamento tradicionalista. Para
muitos, estava até na hora de mudar algumas coisas em nossa velha Apophistyphon.
Meu caro amigo, a voz do povo é a voz de Deus. Uma avalanche de mudanças estava
por vim.
O
padre Caronte é um sujeito muito estranho, não é muito de conversar e nem de
fazer amigos. Sempre que tentamos nos aproximar, ele sempre dá um jeito de nos
afastar argumentando estar muito ocupado. Certo dia, ele terminou a reunião de
domingo mais cedo. Teria sido algo muito normal se ele tivesse dispensado a
todos: meninos e meninas. Foi aí que comecei a achar que algo estava tomando um
caminho muito dubitável. Esperamos as meninas saírem de dentro da capela, que
se encontrava trancada a sete chaves e perguntamos o que tinha acontecido, mas
nenhuma delas falou nada. Todas estavam com um semblante de alguém que havia
tido contato com um ser das trevas. Assustadas e silenciadas, era assim que
elas se mostraram.
O
tempo foi passando e as coisas foram ficando ainda piores. Conversamos com os
nossos pais sobre o comportamento do padre Caronte, mas eles nos desprezavam e
estavam sempre muito ocupados para nos dar atenção.
Insatisfeitos
e incomodados com algo, Getúlio e eu fomos até a casa do padre, mas ele não
estava por lá. Entramos, mesmo sabendo que não havia ninguém, e encontramos
vários livros sobre a mesa da sala. Algo normal para alguém extremamente culto,
se não fosse bastante chocante devido aos títulos. Tratava-se de livros nada
cristãos. Não lembro o nome de todos, mas um em especial me chamou a atenção: Liber Al vel Legis ou o Livro da Lei de Thelema, de um bruxo
inglês chamado Aleister Crowley. Dizem as más línguas que esse tal de Crowley
era um seguidor de Satã e se autodenominava “a Besta’’. Imediatamente
abandonamos aquele covil e seguimos, chocados com o que vimos, em busca de
aprofundarmos o nosso conhecimento sobre o que acabáramos de ver.
O
que um padre fazia com livros considerados demoníacos? Era exatamente para essa
pergunta que queríamos encontrar uma resposta. Procuramos ajuda em vários
locais, mas como nossa biblioteca publica não tinha mais do que dez livros
velhos e maltratados não conseguimos mais informações sobre o conteúdo dos
textos e nem sobre o seu escritor.
Helena
sempre foi a menina mais bela da cidade. Ela tinha um olhar muito sedutor,
olhos azuis e pele perfeita, tinha um corpo não de menininha, mas de uma mulher
sedutora, tinha pernas grossas e seios volumosos e singularmente bonitos;
chamavam a atenção no meio da multidão, mas a menina tinha um pequeno problema:
a sua bem aparente inocência. A pobrezinha era muito imatura; nunca havia
aprendido a dizer não para uma pequena tentação. Não era candidata a freira por
opção, tinha começado a freqüentar as reuniões depois de uma briga com o
próprio pai, que se encontrava preso por ser suspeito de roubo. Era de família
complicada. Desestruturada mesmo antes dela nascer.
Encontros
entre o padre e a menina foram se tornando freqüentes e ultrapassavam todos os
limites da moral. No começo, eram mais controlados devido ao ambiente, eles se
viam na igreja, mas depois começaram a se encontrar nas dependências do sujeito.
Caronte era um ser desprezível. Ele estava mantendo relações sexuais com todas
as meninas que freqüentavam as reuniões dominicais. Um dia desses flagrei uma
orgia promovida pelo verme, que mais parecia um barqueiro que estava levando as
meninas todas elas, sem nenhuma exceção, para o inferno por um rio apodrecido
pelos atos pecaminosos da humanidade. Um verdadeiro abandono da fé. Um lobo
vestido em cordeiro.
Mais
uma vez tentei conversar com meus pais sobre o que eu acabara de ver e mais uma
vez fui desprezado. Tudo inútil. Pobres são os espíritos dos adultos, eles
acham que sabem de tudo, mas a realidade é bem diferente, são pessoas que não
aprenderam nada e só acreditam no que eles idealizam como verdade. Suas
verdades; estão certos.
Resolvi
desistir de procurar ajuda e decidi agir por conta própria, alguém iria
acreditar se visse. Levei Raul da padaria para confirmar o que eu estava
falando. Queria que alguém popular pudesse ver as coisas que eu via. Invadimos
a casa do padre e procuramos por longas horas o livro da Lei. Mas o sujeito era
muito esperto, não encontramos nem vestígios de sua existência. Ganhei o título
de mentiroso e perdi ainda mais a credibilidade quando fomos flagrados pelo
padre Caronte. Isso mesmo, subitamente, o padre, bem... O desgraçado entrou calmamente pela porta da
frente como se não soubesse de nada e como se fosse vítima de alguma injustiça,
acusação sem nenhum fundamento. Os enviados do demônio deviam ter muito mais
força do que pensei.
Parei
de procurar provas contra Satanás e comecei a acreditar que se todos queriam
tratar o mal como bem, que assim fosse então. Encontrava o padre e não trocava
nem um singelo bom dia. O diabo me olhava como se fosse me destruir com aqueles
olhos avermelhados. Mais pareciam duas tochas de fogo prontas para me desintegrar
em questão de segundos.
Um
dia, para minha surpresa, Helena veio ao meu encontro e contou que precisava de
minha ajuda. Ela me procurou porque ouviu boatos na cidade de que eu tinha
provas contra o senhor Caronte. A menina me relatou varias coisas absurdas e
ainda que estava grávida, esperando um filho do padre. Um anti-Cristo talvez.
Não poderia deixar a pobre moça sem uma mão amiga ou amparo. Na verdade, aquela
era a minha chance de mostrar que tudo que eu já havia falado não era fruto da
minha imaginação.
Após
uma longa conversa, decidimos contar primeiro ao padre Caronte, que aquela
altura não sabia de nada ainda sobre a gravidez, mas o que nós decidimos fazer
em conjunto foi quebrado por um ato impensável de Helena. Ela saiu da minha
casa antes que eu pudesse perceber que estava falando sozinho enquanto
procurava um gravador velho para registrarmos a conversa com o sacerdote. A
menina estava, e eu não a condenei por isso, muito chocada com tudo que havia
passado até então.
Quando
tomei conhecimento do que aconteceu ontem, fiquei perplexo e não sabia mais o
que fazer e a quem contar, por isso; estou lhe comunicando tudo. Os peritos que
analisaram o corpo disseram que ela havia cometido suicídio. Juravam de pés
juntos que a pequena jovem colocou várias pedras enormes dentro dos bolsos do
vestido e caminhou em direção ao lago até se afogar, com o peso que carregava
não poderia retornar caso se arrependesse.
E
você deve estar se perguntando sobre o padre. Bem, o padre Caronte foi
encontrado enforcado em uma árvore em frente a minha casa. Todos pensam que
tenho alguma ligação com o acontecido, mas ninguém acreditaria em uma única
palavra minha, eu não tenho mais nenhuma credibilidade nessa cidade.
Caro
Felipe, você é o único que sabe da verdade, por favor, me ajude a contar isso
ao mundo. O padre Caronte foi o homem mais maligno e satânico que já pisou no
planeta terra. Estou até com medo que o demônio coloque a sua alma para vir
aqui atrás de mim. Sempre imaginei que Apophistyphon seria uma cidade conhecida
por algo bom e não por causa do estranho caso dessa jovem...
FIM?
Ps. Ao
terminar esse conto, seu autor foi encontrado misteriosamente morto com um
bilhete sobre seu corpo gélido. Era uma noite fria e gélida onde as nuvens
pairavam baixas e opressoras. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, mas dizem
que o mistério gira em torno do caso relatado nas páginas anteriores. Se você,
leitor descobrir algo, escreva uma carta para alguém de Apophistyphon
explicando o que aconteceu. Não sabe onde fica Apophistyphon? Não se preocupe, pois
você jamais achará essa cidade, o barqueiro desse lugar, encontrará você
primeiro para que juntos, possam ter uma conversa sem hora para acabar. Até
breve!
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A imagem cedida por Allan
Cassiano.
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